Cumplicidade

Doméstico sem (outros) animais – de memória.

Introduzi a chave com lentidão e rodei o cilindro de maneira precisa, ao mesmo tempo que puxava a maçaneta tentando encontrar a posição aonde a fricção entre a lingueta e a contra-testa era a menor. Uma vez completo este movimento, empurrei os primeiros centimetros de porta de maneira a evitar que a corrente de ar me pudesse denunciar para em seguida movê-la rapidamente a fim de diminuir o tempo de exposição dos teus ouvidos aos barulhos produzidos pelos diversos engenhos motorizados, rua a cima rua a baixo. Encostei-a com suavidade, sem deixar bater o trinco e acabei por largar delicadamente a alavanca interior, boca aberta, sem bafejar. A chave tinha-a deixado pendurada, e os sapatos sobre o tapete. Avancei fazendo talvez marcas de transpiração sobre a madeira, mas sem me deixar traír duma outra maneira. Entrei na sala negrume. Aproximei-me de ti, depois da tua respiração… Hesitei pelo prazer de te contemplar e beijei-te uma palpebra quase sem a tocar.
Não foste capaz de continuar a fingir e riste à gargalhada.

Estética e funcionalidade

Nunca me mostrou os seus corpos, rostos, objectos, legumes e frutas com peixes frescos à mistura, desenhos que imagino traçados à luz dos mais belos dias com gestos generosos em tons quentes, altruístas… Tudo nela se me apresenta sob uma única forma, a de um coração invisível segredoso que se agita no meu peito.

Entre os dois, uma obra incalculada em efeito de ressonância e risco de ruptura mesmo antes de assumir o seu modo funcional, mesmo antes da cerimónia solene. Uma ponte que vibra com a perturbação causada pelo que não é conhecido porque só eu estou certo da inexistência do projecto do edifício em construção.

Cinéfilos e amantes também de música

Salada pré-lavada, óleo de grainhas de uva, vinagre balsâmico, nenhum sal; foi o meu jantar minimalista a ouvir Steve Reich enquanto o seu, mais reconfortante, foi composto de Nouvelle Vague e uma sopa quentinha de noodles chineses com frango, alho francês, cenoura, cogumelos, coentros… Afinal ainda era inverno.
Mal voltou, logo depois do cigarro descaféinado, enrolámo-nos cada um numa ponta da imensa manta azul estrelada para vermos juntos aquele filme de Hong Kong realisado por Wong Kar-wai. Ela a partir de Youtube, legendado automaticamente e eu, de Putlocker… sem legendas.
– Nada pode contrariar dois seres « In Mood For Love »… pensarão os mais entusiastas.
– Excepto uma ligação wifi defeituosa – acrescento eu, derrotado.
O « buffering » veio dar sentido à ficção e tudo ficou em suspenso até 2046.

« Love is a matter of timing. You think it will work out. But it will often end up otherwise. (…) »