Escriba

Doméstico sem (outros) animais – de memória.

Introduzi a chave com lentidão e rodei o cilindro de maneira precisa, ao mesmo tempo que puxava a maçaneta tentando encontrar a posição aonde a fricção entre a lingueta e a contra-testa era a menor. Uma vez completo este movimento, empurrei os primeiros centimetros de porta de maneira a evitar que a corrente de ar me pudesse denunciar para em seguida movê-la rapidamente a fim de diminuir o tempo de exposição dos teus ouvidos aos barulhos produzidos pelos diversos engenhos motorizados, rua a cima rua a baixo. Encostei-a com suavidade, sem deixar bater o trinco e acabei por largar delicadamente a alavanca interior, boca aberta, sem bafejar. A chave tinha-a deixado pendurada, e os sapatos sobre o tapete. Avancei fazendo talvez marcas de transpiração sobre a madeira, mas sem me deixar traír duma outra maneira. Entrei na sala negrume. Aproximei-me de ti, depois da tua respiração… Hesitei pelo prazer de te contemplar e beijei-te uma palpebra quase sem a tocar.
Não foste capaz de continuar a fingir e riste à gargalhada.

Dactilografia sem luz em folhas vazias

Arranjo cuidado de alguns termos transmontanos sem pronúncia, outros transpirados da Caotinha, outros ainda desenhados segundo costumes linguísticos duma região remota, alpina. Todos pretendem evocar doutrinas comunistas que nunca foram escritas, nem a sul, nem a leste; proclamar uma cidadania que nunca existirá para além da Landsgemeinde em vias de extinção, apesar do aumento da utilização inútil da mão no ar (polegar no face). Itálicos no português do Brasil, outro português com erros que, pela unica qualidade que possui – a sonoridade – merecia que lhe chamassem brasileiro. Chinezices e zês bicudos em vez de esses, esses mais suaves. Acentos, desnecessários para alguns, e consoantes mudas que não existiram nem mesmo antes do acordo. Parêntesis como forma não recomendável porque alatinada, pondo en evidência o que não devia ter sido ortografado. Três sentidos na mesma linha; pontos sem parágrafos. Enfim, inteligência sem ponctuação em sentimentos sem interlinhas; querer sem crer, gozando de toda a satisfação do acreditar; vontade impotente sempre inscrita, mas com letras pequenas, em baixo de cada página, à esquerda ou à direita, consoante par, ou não.

Assinatura eléctrónica, falta de rede.

Estética e funcionalidade

Nunca me mostrou os seus corpos, rostos, objectos, legumes e frutas com peixes frescos à mistura, desenhos que imagino traçados à luz dos mais belos dias com gestos generosos em tons quentes, altruístas… Tudo nela se me apresenta sob uma única forma, a de um coração invisível segredoso que se agita no meu peito.

Entre os dois, uma obra incalculada em efeito de ressonância e risco de ruptura mesmo antes de assumir o seu modo funcional, mesmo antes da cerimónia solene. Uma ponte que vibra com a perturbação causada pelo que não é conhecido porque só eu estou certo da inexistência do projecto do edifício em construção.

Cinéfilos e amantes também de música

Salada pré-lavada, óleo de grainhas de uva, vinagre balsâmico, nenhum sal; foi o meu jantar minimalista a ouvir Steve Reich enquanto o seu, mais reconfortante, foi composto de Nouvelle Vague e uma sopa quentinha de noodles chineses com frango, alho francês, cenoura, cogumelos, coentros… Afinal ainda era inverno.
Mal voltou, logo depois do cigarro descaféinado, enrolámo-nos cada um numa ponta da imensa manta azul estrelada para vermos juntos aquele filme de Hong Kong realisado por Wong Kar-wai. Ela a partir de Youtube, legendado automaticamente e eu, de Putlocker… sem legendas.
– Nada pode contrariar dois seres « In Mood For Love »… pensarão os mais entusiastas.
– Excepto uma ligação wifi defeituosa – acrescento eu, derrotado.
O « buffering » veio dar sentido à ficção e tudo ficou em suspenso até 2046.

« Love is a matter of timing. You think it will work out. But it will often end up otherwise. (…) »

Rir

(…)

Por outro lado, se começarmos todos a rir de tudo, e não houver quem se sinta ofendido, corremos o risco de entrar numa espécie de monotonia à qual se seguirá uma tremenda solidão….

Não! O melhor para todos é que haja sempre quem se sinta pelo menos descomposto; assim poderemos continuar a rir.

Cromos

Formatados pequenos e coloridos, em pacotes repartidos, numerados , vendidos e comprados, estimados – entre as folhas dum livro denso e erudito – ou dobrados para virar, virados, endireitados, ordenados e colados; santinhos, jogadores, flores duma mesma natureza em matéria degradável, cromos somos todos nós, uns raros outros para a troca.

Kulefuka – Capítulo III

Kulefuka e a primeira chuva do ano de 1955

A Inês

A nossa heroína, era talvez nessa altura uma menina de dezasseis anos com um viver próximo do de outras adolescentes: Jogava basket na equipa local com o seu irmão, costurava na Singer familiar a maior parte dos seus vestidos depois de cortar as partes, servindo-se como modelo das peças daqueles que já não podia usar. Montava com subtileza, tinha autorização e possuia a energia necessária para cavalgar através das anharas durante horas e manejava com precisão o rifle 8mm da família – se bem que a caça tivesse cedo vindo a tornar-se a especialidade da Ivette, a mais nova das suas quatro irmãs. Continue la lecture